domingo, 3 de outubro de 2010

100 anos de quê?

Vasco Pulido Valente escreve hoje, lucidamente, no "Público" verdades que muito custam ouvir e ler aos pseudo-intelectuais que se vão pavoneando no centenário da república:

"(…) Não admira que a República nunca se tenha conseguido consolidar. De facto, nunca chegou a ser um regime. Era um “estado de coisas”, regulamente interrompido por golpes militares, insurreições de massa e uma verdadeira guerra civil. Em pouco mais de 15 anos morreu muita gente: em combate, executada na praça pública pelo “povo” em fúria ou assassinada por quadrilhas partidárias, como em 1921 o primeiro-ministro António Granjo, pela quadrilha do “Dente de Ouro”. O número de presos políticos, que raramente ficou por menos de um milhar, subiu em alguns momentos a mais de 3.000. Como dizia Salazar, “simultânea ou sucessivamente” meio Portugal acabou por ir parar às democráticas cadeias da República, a maior parte das vezes sem saber porquê.

Em 2010, a questão é esta: como é possível pedir aos partidos de uma democracia liberal que festejem uma ditadura terrorista em que reinavam “carbonários” vigilantes de vário género e pêlo e a “formiga branca” do jacobinismo? Como é possível pedir a uma cultura política assente nos “direitos do homem e do cidadão” que preste homenagem oficial a uma cultura política que perseguia sem escrúpulos uma vasta e indeterminada multidão de “suspeitos” (anarquistas, anarco-sindicalistas, monárquicos, moderados e por aí fora)? Como é possível ao Estado da tolerância e da aceitação do “outro” mostrar agora o seu respeito por uma ideologia cuja essência era a erradicação do catolicismo? E, principalmente, como é possível ignorar que a Monarquia, apesar da sua decadência e da sua inoperância, fora um regime bem mais livre e legalista do que a grosseira cópia do pior radicalismo francês, que o 5 de Outubro trouxe a Portugal?
"

Penso que as questões levantadas pelo historiador merecem cuidada e aprofundada reflexão, para que a euforia dos festejos e os discurrsos fleumáticos não nos toldem a compreensão...

7 comentários:

  1. É evidente que uma postura ideológica que se pauta pela crença positivista segundo a qual a Humanidade avança de inelutavelmente em direcção ao Progresso e à Ordem (sempre maiusculados) e que as forças sociais que lhe obstam devem ser arredadas, ainda que à força, por terem uma postura política «anticientífica» e metafísica, tem todos os condimentos para ser amplamente violenta e causar desacatos terríveis. Os republicanos queriam fazer uma revolução, e as revoluções, de que tipo sejam, não são piqueniques bucólicos onde nada corre demasiadamente mal: são actos reconfiguradores de determinada sociedade, e essa reconfiguração por vezes choca com elementos inamovíveis que só a força pode repelir. Recordo a instauração do liberalismo em Portugal: de que outro modo podia ter sido feito sem a brutalidade da guerra civil, as lutas entre cartistas e vintistas, o cabralismo, a regeneração? Uma mutação radical da sociedade nunca se faz sem dor. Isto não é belicismo, é uma constatação de facto que tem inúmeros exemplos históricos a comprová-lo.
    Sobre o caso concreto, e embora te saiba monárquico, lamento, mas o critério da hereditariedade era um completo absurdo para o acesso à chefia do Estado. E bem assim a existência de uma câmara legislativa de nomeação régia, insindicável, e quantas vezes suprida de providenciais «fornadas de pares» quando era preciso um contrabalanço de votos que viabilizasse dada norma. A soberania régia então vigente, a concepção da chefia do Estado como prebenda de dada família, e demais características da monarquia, eram elementos de legitimidade política nos quais não consigo ver qualquer racionalidade. O republicanismo, enquanto princípio e como prática, era uma tentativa de erradicação da irracionalidade como fundamento da acção política - e não é alheia a isso a luta anticlerical -, e esse mérito deve ser reconhecido. Nunca mais se voltou a aceitar, nem durante o fascismo, que o poder vigorasse por privilégio familiar, por nomeação de certo chefe hereditário, por qualquer critério que não fosse o da decisão popular mais ou menos condicionada. É óbvio que as práticas políticas irracionais não foram arredadas com o republicanismo, mas foram, duradouramente, deslegitimadas entre 1910 e 1926. E isso é um precioso legado.

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  2. Caro João

    "Os republicanos queriam fazer uma revolução, e as revoluções, de que tipo sejam, não são piqueniques bucólicos onde nada corre demasiadamente mal [...]"

    A Revolução Republicana foi, em quase todos os particulares, um fracasso:
    - propunha-se "regenerar" o sistema, acabando com o rotativismo monárquico e, ao invés, instituiu um sistema iníquo, de dominação do Partido Democrático de Afonso Costa, tendo para tal recorrido às mais vis formas de perseguição e "extorsão" eleitoral
    - propunha-se criar uma chefia do Estado mais representativa de todos os cidadãos, mas não conseguiu que os seus Presidentes da República durasse mais que 2-3 anos no cargo (o único Presidente que fez o mandato completo foi o "evolucionista" António José de Almeida)
    - propunha-se resolver a crise financeira e social e, claramente, agravou-as
    - propunha-se acabar com a instabilidade política e, em 16 anos, Portugal teve 45 governos!!!!

    Penso que a única verdadeira obra da I República foi a educação patriótica e uma acção pedagógica claramente vocacionada para a formação de "sementes" de cidadania... Também a tentativa de universalização do ensino primário foi importantíssima.

    Mas, meu caro... Foi tão pouco... E, acima de tudo, tão mau!

    Um abraço

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  3. - propunha-se "regenerar" o sistema, acabando com o rotativismo monárquico e, ao invés, instituiu um sistema iníquo, de dominação do Partido Democrático de Afonso Costa, tendo para tal recorrido às mais vis formas de perseguição e "extorsão" eleitoral

    Sobre iniquidades e extorsões, conhecerás tão bem como eu as manobras de «jerry mannering» e a acção do cacicato e da Igreja contra a divulgação ideológica e o ascenso político dos republicanos em Portugal. Os liberalismos do séc. XIX - e essa é uma das coisas que me faz rir quando oiço criticar as «horríveis ditaduras» do socialismo, verificáveis que são as suas práticas fundamentais em todos os regimes recém-nascidos como forma de impedir as conquistas revolucionárias - não se pautavam, bem o sabemos, por uma particular lisura de métodos eleitorais. A república só prosseguiu a trajectória.

    propunha-se criar uma chefia do Estado mais representativa de todos os cidadãos, mas não conseguiu que os seus Presidentes da República durasse mais que 2-3 anos no cargo

    Não confundas legitimidade com sustentabilidade. Instabilidade política - incontornável quando se envidavam alterações tão radicais na sociedade - era inevitável, tanto mais quando o republicanismo se estilhaçou em facções. Mas não há como dizer que o Rei, legitimado hereditariamente, era mais representativo dos cidadãos do que um Presidente eleito por estes (a despeito dos condicionamentos que essa eleição pudesse ter).

    - propunha-se resolver a crise financeira e social e, claramente, agravou-as
    - propunha-se acabar com a instabilidade política e, em 16 anos, Portugal teve 45 governos


    Com isto estou plenamente de acordo, mas de resto era inevitável. Não me recordo de alguma vez ter lido uma página de pensamento económico republicano - e sei que o socialismo de então foi tratado, muito positivisticamente, à paulada... -, e, sendo certo que a Europa de então também não era o cúmulo da estabilidade, a República não nos resguardou e seguramente acirrou essa instabilidade. Em todo caso, como disse no comentário anterior, o principal legado da República é no plano dos princípios que definem o contorno político português. A república trouxe a laicidade, trouxe a racionalidade, eliminou definitivamente detritos ideológicos do Antigo Regime com os quais não vejo como se pode concordar. Mas já falei sobre isso noutro comentário e, seguramente, abrirmos uma discussão sobre isso era meio caminho andado para não chegarmos a lado nenhum.

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  4. "A república trouxe a laicidade, trouxe a racionalidade, eliminou definitivamente detritos ideológicos do Antigo Regime com os quais não vejo como se pode concordar".

    Caro: e o Estado Novo? E Salazar e Cerejeira? E a alinaça ao mais alto nível entre "trono e altar"???

    Quanto à questão da legitimidade do Rei coloco-te uma simples e muito clara questão: questionas a legitimidade do teu Pai e Avô de serem os chefes da tua família e as cabeças do teu agregado sóp porque não foram "eleitos" democraticamente...?

    O Rei e a Nação são um só. A legitimidade do Rei advém, não apenas da historicidade, mas igualmente de uma aliança plena com as forças vivas da nação através de uma total identificação nacional.

    O Rei não tem partido, não está filiado a nenhum interesse, não tem que trabalhar para ser reeleito - e nos dias que correm isso é uma imensa vantagem, meu caro amigo!

    Um abraço fraterno

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  5. Faltou dizer que o Rei é eleito e reeleito por Deus...É UM PREDESTINADO com confirmação e Bula PAPAL... o representante de Deus na Terra...

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  6. O Estado Novo, Gonçalo, é um excelente exemplo do adquirido da República em matéria de laicidade: nem Salazar, que era Salazar, se atreveu a reinstituir o carácter oficial da religião católica. Nem ele foi além da Concordata, reconhecendo que a alteração qualitativa que a República introduzira nessa matéria era já irrevogável, como provou ser. Foi, repito, um adquirido.
    Sobre o meu pai, a questão parece-me mal colocada: eu aquiesço por educação - e esta palavra não está aqui inocentemente... - quando falo com o meu pai ou o meu avô, mas daí a considerá-los «chefes» da minha família medeia um passo imenso, e que jamais darei. São mais velhos, merecem-me respeito, mas em minha casa impera a razão e decide-se, porque todos somos adultos, em acordo comum, não se segue a vontade de alguém simplesmente porque é «o chefe». E deve ser assim nos países: não há qualquer sentido em que um chefe o seja «por natureza», sem consentimento, ainda para mais com o argumento falacioso da «suprapartidaridade»: acaso um Rei não é um sujeito? Não nasce numa sociedade? Não tem determinada educação e não outra, num certo meio e não noutro meio qualquer? Sendo assim, não é por definição o Rei alguém que tem uma ideologia - no sentido sociológico do termo -, uma cosmovisão sobre o certo e o errado, que o faz mais próximo de determinado estamento social e de determinada doutrina política do que de outros? É de uma evidência que não pode merecer reparo em alguém que, como tu, muito sabe de Ciências Sociais.
    Assim, o Rei não está ligado «à nação»: a nação não existe como destinatário de políticas. Existem classes, e as classes têm interesses tantas vezes antagónicos, inconciliáveis. Não podemos permitir, a bem da própria democracia, que hereditária e insindicavelmente a chefia do Estado pertença a alguém que, inevitavelmente, fará pender o seu poder a favor de um lado contra outro. É simplesmente errado.

    PS - Nem sequer vou responder ao comentário da bula e da predestinação. Quem fala como falei da República e tem a filiação ideológica que eu tenho, deixa só por isso bem clara a conta em que tem um papel subscrito por um papa como elemento legitimador...

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  7. Há coisas que são naturais e inerentes ao ser humano - a necessidade de uma autoridade, de uma figura de referência, de um elemento que traga coesão à nação são disso exemplo.

    Ninguém melhor que um Rei poderá exercer uma magistratura de representatividade pública, sem qualquer "roupagem" político-partidária e tendo apenas do seu lado a tradição de serviço da sua família ao serviço da Pátria (muito mais que a Nação, a Pátria é um conceito superlativo e heróico, pleno de historicidade e de enorme e distinto de portugalidade).

    Reduzir uma magistratura como a Chefia do Estado a uma eleição, é muito pouco... Eu posso igualmente estar a eleger um inacapaz, um incompetente que, só porque tem um aparelho partidário atrás... ganha!

    E quanto a máquinas eleitorais, o PCP é uma das mais oleadas, com a sua força junto dos trabalhadores, dos sindicatos e do aparelho produtivo!

    A defesa de uma monarquia para Portugal não é uma miragem e um mero retorno a um nostálgico "status quo ante", mas sim, cada vez mais, uma necessidade e uma verdadeira benção para um Portugal cuja III República está defunta e incapaz de se redimensionar!

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